segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O DIFERENTE EM NÓS

Lidar com alguém diferente e que, a princípio, nos causa aversão, não é nada fácil. A primeira reação é agir “corretamente”. Afinal, somos pessoas éticas, politicamente corretas e não admitimos desrespeito ao outro. Apesar de nunca nos termos deparado com um contexto tão pouco familiar, somos pessoas bem informadas e racionais, que sabem minimamente agir diante do desconhecido. Respondemos com delicadeza, somos gentis e solícitos. Em tempos de inclusão, quem quer se mostrar como alguém que não aceita as diferenças?

Depois de um certo tempo de convivência, no entanto, a máscara da “boa pessoa” começa a ceder e passamos a mostrar quem realmente somos. Duas horas com alguém muito diferente de nós bastam para disparar nossa impaciência e a reação, quase instintiva, de fugir da situação. Algo começa a nos incomodar por dentro e, sem perceber, tratamos de inventar motivos para ir embora. Surge uma inquietação que toma a forma de perguntas e “falsas” certezas: “Por que estou aqui, por que tenho que passar por isso? Eu não preciso disso, eu não tenho nada a ver com isso”. 

A grande maioria das pessoas, infelizmente, não ultrapassa esse limite. Aprisionada pelo medo do diferente, foge da experiência e das inúmeras possibilidades que ela pode oferecer. Transpor o limite entre o conhecido e o desconhecido é um grande risco, mas é também uma grande aventura. E a aventura começa quando nos “jogamos de peito aberto”, permitindo-nos viver, de fato, e não apenas fingir. 

É só aprofundando a relação com o outro, diferente de nós, que podemos viver e retirar algo da experiência. Se nada fica, se nada marca, é porque não vivemos, é porque nos fechamos em nós mesmos. É paradoxal, mas à medida em que nos fechamos em nós mesmos, nos fechamos para nós mesmos e à medida que nos abrimos para o outro, nos abrimos para nos conhecer, para nos encontrar conosco.

Parece que a nossa real dificuldade não é a aceitação do diferente no outro, mas a aceitação do diferente em nós. Por isso fugimos, por isso temos tanto medo. Há uma ideia banal, que parece até clichê, mas não é: o que vejo no outro está em mim; o mundo é meu espelho. 

Conviver com uma pessoa diferente e “especial”, seja ela um deficiente físico ou mental, ou até um ser humano dito “normal” pode ser uma experiência maravilhosa quando se está aberto para conhecer o outro e a si mesmo. Essa pessoa, na sua “especialidade”, vai nos mostrar exatamente o que precisamos aprender, pois ela tem a habilidade para isso.

Quando olhamos para uma pessoa com deficiência intelectual, por exemplo, podemos ver o quanto não aceitamos o nosso lado frágil, ingênuo, repetitivo, inquieto, infantil. Também podemos enxergar aquele aspecto de nós que já foi excluído um dia, por nós mesmos ou pelos outros, e que teima em querer aparecer, em querer viver, mesmo que tentemos escondê-lo.

Ao nos relacionarmos profundamente com alguém assim, tão especial, podemos também descobrir o quanto há de belo no outro: o olhar sincero, o abraço inesperado, a intimidade que tanto necessitamos e que ele pode nos dar. E, aos poucos, vamos enxergando um outro lado de nós, ainda mais desconhecido: um eu capaz de amar, de dar, de ser espontâneo, enfim, de aceitar o outro.    

Num dia desses convivi com um ser humano especialíssimo, sobrevivente de uma hidrocefalia de nascimento, que me fez abrir o coração. Na despedida, quando olhamos nos olhos um do outro, percebi, por trás de toda aparente diferença, o quanto somos iguais, o quanto queremos ser aceitos e amados por aquilo que somos, sem restrições. Ninguém quer ser excluído, mas sem perceber excluímos muita coisa em nós antes mesmo de mostrar aos outros.

Esse menino me ensinou a olhar para um lado de mim que não via, um lado frágil e excluído, que luta para ser aceito, olhado pelos outros. Um lado que quer existir, mesmo que o mundo todo diga, embora negue, que ele não tem direito e que deve ficar guardado, escondido, obscurecido.

Percebi que perdemos muito tempo mascarando quem somos. Às vezes, passamos a vida toda mostrando um eu disfarçado, um eu social. Pessoas como o menino que conheci são especiais justamente porque não escondem nada, porque são o que são.

Pensei que, da próxima vez que encontrar alguém como ele, não vou desperdiçar o tempo tentando fugir. Vou me entregar à experiência, vou mostrar minhas fragilidades, vou ser eu mesma. E ser eu mesma não é ser o que sempre fui, não é agir segundo um padrão pré-definido, mas ser uma constante abertura ao outro, porque o outro está em mim.   

Escrito em março de 2006.

LEIA, POR FAVOR...EU TE AMO

Era hora do chá. Todos os dias, a mesma hora, Sara tomava chá com biscoitos antes de ir para aula. Nesse dia, sem saber porque, resolveu checar seus e-mails. Entre eles, havia um, com o título “leia, por favor...eu te amo”, que lhe chamou atenção. 

 

“Te amo demais!

Preciso dizer o quanto amo você!

Às vezes você passa e eu fico te olhando, morro de medo de falar contigo e você me rejeitar.

Espero que você pelo menos se interesse em ler o texto que fiz, nele pelo menos eu digo quem sou. MAS POR FAVOR, NÃO FIQUE COM RAIVA DE MIM!”

 

Ao terminar de ler, sentiu uma pitada de orgulho e ficou curiosa para ler o texto em anexo. Tentou abrir, mas não conseguiu. Enquanto relia a mensagem, Sara indagava-se sobre quem seria que mandara aquela declaração de amor. Não costumava sair, a não ser para ir ao trabalho. Muito menos dava seus dados pessoais para desconhecidos. Talvez seja algum aluno! Esse pensamento passou por sua mente numa velocidade que quase ela não percebeu. Será que poderia admitir isso pra si mesma? Um aluno? Em 25 anos de Magistério nunca havia acontecido algo semelhante. E logo agora que ela já havia passado da idade de namorar?

Mas a ideia de ter um aluno apaixonado começou a fisgá-la. Achou interessante cogitar essa possibilidade e começou a pensar em prováveis candidatos. O primeiro de quem lembrou foi o Walter. Era um rapaz bem tímido, mas que seguidamente vinha conversar com ela pedindo esclarecimentos e orientações. Lembrou que um dia, em uma aula, Walter olhara sorridente para ela. Quando percebeu, ficou encabulada e virou o rosto. Lembrou de outros tantos olhares que passaram despercebidos no momento, mas que agora adquiriam outro significado.

Continuou a procurar na memória algum outro aluno e lembrou de Ulisses. Ulisses já não era tão jovem; talvez já tivesse uns 35. Mesmo assim era bem distante dos seus quase 60. Ela já prestara atenção nele. Geralmente se vestia formalmente, com calças de tergal e sapatos. Lembrou que um dia ele fora à aula de terno e gravata. Sara gostava de homens bem vestidos, num estilo formal. Mas Ulisses não parecia estar interessado nela. Mas e ela, estaria interessada nele? Nunca havia pensando sobre isso, era como se fosse proibido pensar. Lembrou que já havia observado que ele não usava aliança. Nesse instante, derramou o café quente na blusa bege, que combinava com a calça num tom marrom claro e teve raiva de si mesma por estar pensando em tantas bobagens. Sim, bobagens, coisas de adolescente, não de uma mulher da terceira idade como ela! Trocou a blusa, ajeitou o cabelo no espelho, pegou suas coisas e saiu para aula.

Naquele dia, ela se sentiu diferente. Olhou para os alunos não só como professora, mas como mulher. Durante o intervalo, lembrou de retocar o batom e arrumar o cabelo. Olhou-se no espelho e notou que estava com uma expressão mais alegre. Fazia tempo que não se sentia assim em sala de aula, tão leve, tão solta, tão espontânea. Geralmente tinha uma expressão carrancuda e séria, que mantinha os alunos à distância. Nesse dia, alguns alunos se aproximaram e uma moça lhe fez um elogio, dizendo que a aula tinha sido muito boa. 

Sara voltou para casa cheia de expectativas. Quem sabe sua vida estava lhe abrindo uma porta? Quem sabe não poderia viver o amor que tanto sonhara, mas que já havia desistido? Mais uma vez lembrou da mensagem e de Ulisses. Talvez ele fosse mesmo muito tímido para se aproximar dela ou dar a entender algo e por isso havia enviado aquela mensagem. Decidiu que faria algo para tirar a dúvida. Sim, ela precisava fazer algo. Já não podia mais deixar o tempo passar, não podia mais desistir de viver. 

No dia seguinte, acordou cedo, tomou um banho demorado e escolheu, com cuidado, o que vestir. Maquiou-se, colocou brincos e salto alto. No final, olhou-se no espelho e viu uma outra Sara, muito mais jovem e alegre.

Quando chegou à Universidade, algumas colegas conversavam e Sara se aproximou para cumprimentá-las. Todas olharam-na com espanto, sem acreditar no que viam. “O que aconteceu, Sara?” Sara não respondeu, só expressou um sorriso tímido. Enquanto checava sua gaveta, ouviu quando uma das colegas contou a outra que havia recebido uma mensagem anônima que dizia “leia, por favor...eu te amo”. Logo percebeu que o e-mail era uma brincadeira, ou até uma mensagem contendo vírus, como a colega cogitara. Saiu da sala completamente desiludida, sentindo-se uma palhaça vestida daquele jeito. Teve vontade de ir pra casa e dar uma desculpa qualquer para os alunos, mas não teve coragem. Sua ética era muito mais forte do que seu desejo de sair correndo dali.

Sara entrou na sala de aula e todos olharam-na estupefatos, inclusive Ulisses. Até então, ele nunca havia notado a mulher por trás da professora. Nesse dia, não foi possível deixar de perceber. A professora Sara estava realmente bonita, elegante e sedutora.     


Escrito em agosto de 2007. 

ENTREGA

 Não havia mais pudor, nem medo.

Eles podiam sentir a textura da pele, o cheiro, o calor, o contorno do corpo um do outro. No peito de ambos, o coração batia acelerado, querendo dizer algo.

Foram anos aguardando este momento e, finalmente, eles estavam ali, juntos, nus e despidos de preconceitos.

Nenhuma palavra foi dita. Os corpos falavam por si. Corpos humanos, vivos, sensíveis.

Cessaram as vozes alienígenas, cessaram as vozes de culpa e vergonha. Cessaram também a dor e a angústia de viver uma mentira.

Era possível sentir alegria e prazer. Um prazer voraz, intenso, carnal... pura entrega.


Escrito em novembro de 2008.

domingo, 17 de outubro de 2021

POR QUE ESCREVO

 Vivo e escrevo. Choro e escrevo. Sinto e escrevo. Sou feliz e escrevo. Escrever é meu sossego, é meu alívio, é minha pílula calmante. Através da escrita eu penso, eu sinto, eu me conheço, eu me desnudo, eu me EXPRESSO. Escrever já faz parte de mim, do que sou, do que quero ser. 

Eu tenho a ânsia de me expressar e, ao fazer isso, eu me compreendo e, assim, aquieto minha mente. Minha mente agitada precisa “criar”, dar forma ao conteúdo caótico que se passa dentro de mim. Quando escrevo, organizo, seleciono, crio.  

Mas escrevo também para ser lida, para afetar, para mostrar possibilidades... Os leitores encontrarão nos meus textos outras Carlizas, personagens de mim mesma, desconhecidas para a maioria deles. Gosto de me expor. Ao me expor eu toco, eu mexo, eu provoco...

Olhando para minha escrita, a vejo como uma escrita do interior. Eu foco aquilo que se passa dentro de mim, à medida que experiencio a vida. Este estilo de escrita revela meu modo de ser introspectivo, um estilo muito pessoal, em que me isolo do mundo para me observar e refletir. Observar o que se passa na mente, o que penso, o que sinto, por que me angustio, por que me alegro, por que estou triste ou feliz. Estar comigo mesma em profundidade é tão necessário para mim quanto respirar, comer, dormir.

Gosto de pensar a escrita como uma tentativa de mostrar a beleza de cada situação, seja ela trágica ou engraçada. Ao escrever, emolduro a minha realidade, faço arte da minha vida e ela se torna mais bela e mais prazerosa de ser vivida.

Através da escrita eu crio e recrio a minha realidade. Os textos não traduzem uma verdade permanente, mas o que senti no momento em que escrevi. Minha escrita flui junto com a emoção e com a reflexão dos acontecimentos. Vejo meus textos como possibilidades de mim mesma, não que eu as esteja concretizando, mas são alternativas sempre disponíveis. Este é o significado dos textos para mim: são como portas que se abriram um dia e que permanecem abertas. São possibilidades sempre disponíveis que me trazem a liberdade a que tanto aspiro.  

Mas nem sempre minha escrita traz consigo essa promessa de liberdade. Nem sempre ela flui livremente. Aprisiono-me, quando, na ânsia de encontrar uma forma mais bonita e perfeita de me expressar, deixo de escrever porque não a encontro. Aprisiono-me, quando, na ânsia de ler mais e mais para ter conteúdo para meus textos, perco aquilo que quero dizer e fico refém do dizer dos outros.

Meu desafio tem sido encontrar aquilo que eu quero dizer, o que é mais profundo em mim, por mais que saiba que não há um eu puro e que o texto, expressão desse eu, é sempre resultado de várias vozes. Busco dentro de mim algo que não encontro fora.

Às vezes busco modelos, como se houvesse uma voz interna que diz que o que escrevo não é o que “deveria escrever”, que não é o “melhor”, que não é “literatura”, que não é “isso ou aquilo”. Quando dou ouvido a essas vozes, que me impõe um ideal de escrita, me sinto completamente incapaz e não escrevo.

Quando me vejo assim, tento aceitar minhas limitações, aceitar que posso não ser tão absolutamente original quanto gostaria e continuo escrevendo. Procuro pensar que os modelos são apenas modelos, que não podem e nem devem servir para todos, e que eu sou única na minha singularidade.

Por fim, escrevo por rebeldia, para dizer não aquilo que me aprisiona, para enfrentar meus medos, para criar linhas de fuga. A escrita, para mim, é um grito de liberdade.

 

Texto escrito em 2006, quando iniciei as oficinas de escrita no Curso de Pedagogia da UCS.

PRESENÇA

Pego a chaleira

Encaixo-a na torneira

Abro a torneira

A água escorre

Enche

Sinto o peso da água...

 

Acendo o fogo

Vejo o fogo

Ouço a chaleira chiar

Sinto o calor do fogo no corpo, nas mãos

Espero

Respiro

Vejo a chaleira

Sinto-a viva...

 

Ela começa a assoviar

Ouço por instantes o assovio

É como se falasse

Vejo o vapor subindo

Toco o vapor com as mãos

Sinto a água...

 

Desligo o fogo

A chaleira silencia

Eu silencio...

 

Escolho a xícara

Vejo a cor, os detalhes do desenho

Sinto seu peso

Acomodo-a no balcão

Relaxo...

 

Me desloco, sentindo meus pés no chão

Abro a caixa de chá

Retiro o saquinho

Sinto seu cheiro, sua textura

Deito-o na xícara

Despejo a água quente, fervida

Vejo o saquinho sorvendo a água

E a água se preenchendo da sua substância

Cubro o chá com um pratinho colorido

Há pássaros e flores

O chá descansa

Minha mente descansa...

 

Levo a xícara para a mesa e sento

Retiro o pratinho de flores e passarinhos

Bebo o chá

Aprecio

Celebro

Me alegro

Me sinto viva!

 

Texto escrito a partir da “prática de meditação do chá” proposta por Arawana Hayashi durante a palestra “Dharma Arte: um caminho para conectar, curar e criar um bom futuro”, no dia 18/09/21.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

APRENDENDO A RESPIRAR

 

           Hoje fui fazer uma radiografia dos pulmões, porque estou com falta de ar já há algum tempo. Já pesquisei sobre o significado emocional desse sintoma físico e o que fica para mim é a dificuldade de me relacionar com a vida. Inspirar e expirar. O ar me conecta com o mundo, com todos os seres e eu tenho dificuldade de fazer isto. Medo de viver? Do que tenho medo? Medo de sentir a dor do mundo.

Desde pequena, sempre fui uma criança sensível e pareço ver coisas que os outros não veem, ou talvez, sentir coisas que os outros não sentem. Com o tempo, descobri que isso é uma qualidade dos piscianos. A “pequena pisciana”, uma vez eu li num texto de astrologia, e isso me soou como se eu fosse uma “criatura frágil”, parecida com aqueles seres estranhos dos contos de fada, com orelhas grandes, olhos profundos e corpos magros. Sendo assim, nunca pude expressar o que via, o que sentia, porque os adultos nem sempre dão bola para as crianças.

Mas meu mundo interior sempre foi muito vasto e eu sentia necessidade de compartilhar isso, de entender, de expressar, elaborar. Com o tempo, percebi que o mundo interior não era algo muito valorizado na sociedade, não era falado, abordado, ensinado. E, aos poucos, fui entendendo que não podia falar sobre isso. E fui silenciando em mim essas vozes internas, meu mundo rico e fantástico, cheio de tanta beleza. Aprendi desde muito cedo a dizer e fazer as coisas certas para ser aceita, para poder existir.

Quando escrevi isto agora, eu chorei, como se estes “seres” que habitam esse espaço interno (ou externo também), pudessem finalmente respirar. Não havia ar para eles lá dentro, pois estavam trancafiados. Hoje eu abri esta porta, essa passagem de ar, o canal de ligação, a conexão com esse mundo. Eu me vejo de novo, eu me sinto! E choro muito. Choro muito por me encontrar depois de tantos anos afastada de mim mesma.

Esta noite sonhei com uma dança, um espetáculo. Eu e uma criança pequena, delicada, bela, dançávamos juntas, completamente “encaixadas”, integradas uma a outra. Era como se deslizássemos em um piso acetinado e formássemos uma bela dança, em perfeita harmonia de movimentos. Quando terminamos a dança, eu a levantei no colo e a coloquei em uma bancada e ela quis falar. Mas os adultos não quiseram ouvi-la.

Esse sonho é muito revelador deste momento da minha vida, mas também do que já foi. A dança de integração com partes de mim do passado, hoje, e o silêncio ao qual me submeti até agora.

O ar faz a conexão entre mundo interno e externo e eu estou aprendendo a respirar. A médica perguntou há quanto tempo eu sentia falta de ar e eu me dei conta de que desde a minha infância. Sim, desde a minha infância eu não respiro bem, mas só agora tomo consciência disso. Hoje tenho 48 anos. Quando penso nisso, sinto uma tristeza profunda, uma compaixão por mim mesma por ter chegado a este momento só aos 48 anos. De outro lado, eu me contento, porque penso: que bom que eu pude ver isso enquanto ainda havia tempo de mudar. Não há mais tempo a perder. Eu quero viver, mais que nunca!!!

Não vou me entupir de remédios, como a médica quis que eu fizesse. Os remédios simplesmente tratam o sintoma, não a causa. Eles camuflam, escondem, entorpecem as realidades profundas que precisamos acessar. A doença, como diz um livro que amo, é um caminho, um caminho de autoconhecimento. A doença é uma mensagem, um presente do corpo para a cura da alma. A doença faz parte da linguagem da alma.

Então, quero olhar para isto, quero sentir a falta de ar e tomar consciência dela cada vez mais. Quero olhar para esta criança do meu sonho, para as crianças da minha sala de aula que anseiam por se expressar. Quero sentir a dor do mundo, a dor dos seres que não podem falar, que não são ouvidos, que não são aceitos. Quero olhar para aqueles que pensam não existir porque ninguém lhes enxerga. Quero ver aquilo que não vi durante muito tempo. Quero me enxergar.

 

Escrito em 28/10/16

VIAGEM PARA DENTRO

 

A vida nos presenteia, a cada instante, com tudo que precisamos para crescer. A questão é saber se realmente queremos crescer. E o que é crescer? Crescer para mim, hoje, é me aceitar. Aceitar aquilo que penso que sou, aceitar aquilo que os outros pensam de mim, aceitar aquilo que ainda não sei sobre mim mesma. Aceitar-me implica não mais esperar pela aceitação dos outros e não depender mais disso para ser feliz.

Me vejo olhando para memórias que estavam muito bem guardadas, trancafiadas até, para lugares dentro de mim onde nunca entrei. A cada dia renovo a coragem, o amor e a compaixão necessários para fazer uma viagem como essa.

Há tempos, quando fui para o Nepal, tive a oportunidade de pegar um bimotor e ver o Monte Evereste bem de pertinho. Eu sempre tive vontade de ir a lugares longínquos, distantes de tudo e de todos, pois imaginava que num desses lugares iria encontrar todas as respostas que procurava. Mas quando cheguei lá, quando estava de cara com aquelas montanhas suntuosas, com toda aquela grandeza e beleza, percebi que aquilo tudo era vazio, ou seja, que o que eu buscava não estava ali. Nada aconteceu dentro de mim, nenhuma mudança, nenhuma mágica ou algo especial.

Esses dias, lendo um livro budista, da Pema Chödron, me dei conta, pela primeira vez, depois de tantos anos lendo e relendo livros como esse que o Caminho do Meio, do qual Buda falava, era o caminho sem direção, o caminho da não-ação, sem movimento, sem ambições. O caminho de parar e olhar para si mesmo.

Na minha vida toda eu fiz planos, e todo ano fazia metas e consegui atingir muitas delas. Minhas metas me davam direção e, assim, eu estava sempre em movimento. Esse é o pensamento comum, de que precisamos ter sonhos, ter metas, saber aonde queremos ir para poder caminhar. E, mais que tudo, precisamos caminhar, nos movimentar na vida.

Mas há tempos vinha sentindo a necessidade de parar esse movimento e de, finalmente, me aquietar. Um acontecimento especial trouxe a oportunidade e decidi que tinha chegado a hora de fazer a roda (da vida) parar de girar.

A grande viagem da minha vida está sendo a viagem para dentro de mim mesma, sem planos, sem projeções para o futuro, um movimento sem movimento. E nessa viagem, aceitação tem sido palavra-chave, algo recorrente nas reflexões do dia a dia.

Essa experiência foi muito sofrida no início, mas agora está começando a ser prazerosa, pois estou gostando de estar só, comigo mesma. Parece estranho afirmar algo assim, mas não é. Explico. Eu sempre busquei companhia, nunca gostei de ficar sozinha. Eu podia ficar sozinha a manhã inteira fazendo minhas tarefas, até dias sozinha, mas eu precisava saber que eu tinha alguém, que alguém preenchia a minha vida, a minha mente. Então, minha mente estava sempre em movimento, na direção de alguém, na espera, na expectativa. Mesmo quando não tinha ninguém, estava à procura. A mente estava ocupada com a busca. A mente estava sempre direcionada para fora, nunca para dentro.

Viajar para dentro de mim mesma tem sido uma experiência incrível. Como é bom me olhar no espelho e ver minha própria imagem. Como é bom me tocar e sentir minha própria pele. Como é bom, enfim, estar comigo mesma. A descoberta mais incrível, recente, atual mesmo, é que estou gostando de mim. Isto não é nada óbvio, embora devesse ser. É um aprendizado: diário, constante, às vezes difícil.

Tanto já foi dito que devemos primeiro amar a nós mesmos para poder amar o próximo, mas isto realmente não é algo que experienciamos. O mais comum é não conseguirmos amar verdadeiramente os outros porque simplesmente não nos amamos e porque, nem sequer, nos conhecemos ou re-conhecemos.

Viajar para dentro é re-conhecer que sou bonita muitas vezes, mas muito feia em outras tantas. Que sou amável, mas às vezes odeio certas coisas e pessoas e sinto raiva. Que eu sou competente em muitas tarefas, mas também erro, cometo falhas, sou imperfeita. Que tenho amigos, pessoas que gostam de estar comigo, mas que há pessoas que preferem me ignorar ou que não querem me ter por perto. Que sou uma boa professora em parte do tempo, mas terrível em outra parte. Que sou boa, mas não sou a melhor. E por que teria que ser? 

Nesta viagem descobri que o caminho da aceitação é o caminho da não-dualidade, da não-exclusão, da integração de tudo que está dentro de mim. Que eu não preciso rejeitar certas partes, deixando-as na sombra, na escuridão e sofrendo, infinitamente, por rejeitá-las. Que eu não preciso ser a menina boazinha e certinha todo o tempo para poder existir neste mundo. Que eu, finalmente, posso ser quem eu sou...

Escrito em 05/10/2016

É PERMITIDO ENVELHECER

Hoje é o primeiro dia da licença de três meses que antecede a minha aposentadoria. É muito bom poder realizar a minha rotina antiga - medita...