O DIFERENTE EM NÓS

Lidar com alguém diferente e que, a princípio, nos causa aversão, não é nada fácil. A primeira reação é agir “corretamente”. Afinal, somos pessoas éticas, politicamente corretas e não admitimos desrespeito ao outro. Apesar de nunca nos termos deparado com um contexto tão pouco familiar, somos pessoas bem informadas e racionais, que sabem minimamente agir diante do desconhecido. Respondemos com delicadeza, somos gentis e solícitos. Em tempos de inclusão, quem quer se mostrar como alguém que não aceita as diferenças?

Depois de um certo tempo de convivência, no entanto, a máscara da “boa pessoa” começa a ceder e passamos a mostrar quem realmente somos. Duas horas com alguém muito diferente de nós bastam para disparar nossa impaciência e a reação, quase instintiva, de fugir da situação. Algo começa a nos incomodar por dentro e, sem perceber, tratamos de inventar motivos para ir embora. Surge uma inquietação que toma a forma de perguntas e “falsas” certezas: “Por que estou aqui, por que tenho que passar por isso? Eu não preciso disso, eu não tenho nada a ver com isso”. 

A grande maioria das pessoas, infelizmente, não ultrapassa esse limite. Aprisionada pelo medo do diferente, foge da experiência e das inúmeras possibilidades que ela pode oferecer. Transpor o limite entre o conhecido e o desconhecido é um grande risco, mas é também uma grande aventura. E a aventura começa quando nos “jogamos de peito aberto”, permitindo-nos viver, de fato, e não apenas fingir. 

É só aprofundando a relação com o outro, diferente de nós, que podemos viver e retirar algo da experiência. Se nada fica, se nada marca, é porque não vivemos, é porque nos fechamos em nós mesmos. É paradoxal, mas à medida em que nos fechamos em nós mesmos, nos fechamos para nós mesmos e à medida que nos abrimos para o outro, nos abrimos para nos conhecer, para nos encontrar conosco.

Parece que a nossa real dificuldade não é a aceitação do diferente no outro, mas a aceitação do diferente em nós. Por isso fugimos, por isso temos tanto medo. Há uma ideia banal, que parece até clichê, mas não é: o que vejo no outro está em mim; o mundo é meu espelho. 

Conviver com uma pessoa diferente e “especial”, seja ela um deficiente físico ou mental, ou até um ser humano dito “normal” pode ser uma experiência maravilhosa quando se está aberto para conhecer o outro e a si mesmo. Essa pessoa, na sua “especialidade”, vai nos mostrar exatamente o que precisamos aprender, pois ela tem a habilidade para isso.

Quando olhamos para uma pessoa com deficiência intelectual, por exemplo, podemos ver o quanto não aceitamos o nosso lado frágil, ingênuo, repetitivo, inquieto, infantil. Também podemos enxergar aquele aspecto de nós que já foi excluído um dia, por nós mesmos ou pelos outros, e que teima em querer aparecer, em querer viver, mesmo que tentemos escondê-lo.

Ao nos relacionarmos profundamente com alguém assim, tão especial, podemos também descobrir o quanto há de belo no outro: o olhar sincero, o abraço inesperado, a intimidade que tanto necessitamos e que ele pode nos dar. E, aos poucos, vamos enxergando um outro lado de nós, ainda mais desconhecido: um eu capaz de amar, de dar, de ser espontâneo, enfim, de aceitar o outro.    

Num dia desses convivi com um ser humano especialíssimo, sobrevivente de uma hidrocefalia de nascimento, que me fez abrir o coração. Na despedida, quando olhamos nos olhos um do outro, percebi, por trás de toda aparente diferença, o quanto somos iguais, o quanto queremos ser aceitos e amados por aquilo que somos, sem restrições. Ninguém quer ser excluído, mas sem perceber excluímos muita coisa em nós antes mesmo de mostrar aos outros.

Esse menino me ensinou a olhar para um lado de mim que não via, um lado frágil e excluído, que luta para ser aceito, olhado pelos outros. Um lado que quer existir, mesmo que o mundo todo diga, embora negue, que ele não tem direito e que deve ficar guardado, escondido, obscurecido.

Percebi que perdemos muito tempo mascarando quem somos. Às vezes, passamos a vida toda mostrando um eu disfarçado, um eu social. Pessoas como o menino que conheci são especiais justamente porque não escondem nada, porque são o que são.

Pensei que, da próxima vez que encontrar alguém como ele, não vou desperdiçar o tempo tentando fugir. Vou me entregar à experiência, vou mostrar minhas fragilidades, vou ser eu mesma. E ser eu mesma não é ser o que sempre fui, não é agir segundo um padrão pré-definido, mas ser uma constante abertura ao outro, porque o outro está em mim.   

Escrito em março de 2006.

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