sábado, 21 de agosto de 2021

GUEIXAS DE HOJE

Assisti recentemente ao filme Memórias de uma gueixa e saí do cinema pensando muito. O filme nos traz uma realidade que parece, a princípio, muito distante de nós, no tempo e no espaço. Olhamos para aquelas mulheres e chegamos a ter compaixão por elas, por não terem a liberdade que nós, mulheres ocidentais, do século XXI, temos. Pensamos que não temos nada em comum com elas. No entanto, se olharmos um pouquinho mais a fundo o nosso comportamento, as nossas ideias e sentimentos, veremos que não somos assim tão diferentes das gueixas do século passado.

Muitas mulheres, hoje, ainda pensam que para “ter um lugar no mundo”, é necessário ter um homem ao lado. Quando estão “sem homem”, dizem que estão sozinhas.

Chiou, a protagonista do filme, já sem esperança de retornar à sua casa e totalmente desiludida, encontra um sentido para sua vida ao cruzar com um homem, o “presidente”, que lhe oferece um doce e diz a ela que quer ver um sorriso nos seus lábios da próxima vez em que se encontrarem.

Para essa menina de seis anos, esse é um momento mágico, em que percebe que ser gueixa lhe traria a possibilidade de estar com o presidente e assim, “ter um lugar no mundo”. Toda sua vida, a partir desse momento, é direcionada para se transformar em gueixa e reencontrar aquele homem. Ela pega todo o dinheiro que dispõe, que daria para alimentá-la por um mês, e oferece no templo, pedindo a seus deuses que a ajudem a realizar seu desejo.

Muitas de nós ainda pensam que o ideal de vida de uma mulher é encontrar um grande amor, um homem que a escolha e que possa provê-la, protegê-la, enfim, dar-lhe segurança por toda vida. Somos educadas para casarmos e constituirmos uma família. Pensamos, incrivelmente, que essa é a nossa única possibilidade, a nossa única escolha. Quando não conseguimos atingir esse ideal, quando não encontramos a pessoa certa, ou quando o namoro ou o casamento se desfaz, ficamos perdidas, desesperadas, pensando muitas vezes que a vida não tem mais sentido.

Chiou, no filme, foi vendida pelos pais, junto com a irmã, às donas do “okaia”, o lugar onde as gueixas moravam e viviam toda a sua vida, sem a liberdade de ir e vir. Quantas de nós ainda são “vendidas” por nossos pais e mães quando eles nos fazem crer que precisamos encontrar um marido para sair de casa ou quando nos dizem que temos que encontrar um cara “bem de vida”, que tenha condições de nos dar, pelo menos, aquilo que eles nos deram?

Durante a guerra, Chiou, já uma mulher, deixa o “okaia” e a vida de gueixa e vai trabalhar numa fábrica de quimonos. Todo esse tempo em que passou na fábrica, para ela, foi um tempo morto, um tempo sem vida, um tempo sem sentido. Embora tivesse liberdade para ser quem quisesse, para se apaixonar, para viver uma outra vida, seu único valor, seu único possível era ser gueixa e esperar até que um homem daqueles que um dia a disputaram pudesse ser o seu “danna”, ou seja, o seu protetor, o seu mantenedor.

Assim como as gueixas, muitas de nós ainda vivem suas vidas à espera de um “danna”, um homem que possa nos dar um lugar no mundo. Dessa perspectiva, todas as outras possibilidades são inexistentes, embora estejam ao alcance de nós. Podemos fazer muitas outras coisas, podemos ser felizes de muitas outras maneiras, mas não enxergamos isso, porque nossas mentes estão à espera, presas numa fantasia que criamos para nós mesmas.

Quando, da nossa perspectiva, temos a “sorte” de encontrarmos um homem, acreditamos, como as gueixas, que temos que fazer tudo para que ele fique conosco e, assim, deixamos de ser nós mesmas, para ser a namorada de, a esposa de, a escolhida por.

Vivemos nossas vidas como gueixas treinadas para agradar os homens, para servi-los, para lhes dar prazer e muitas vezes negamos nossa própria vida, nossos valores, nossas escolhas, nossos sonhos, nossos prazeres. Abrimos mão de um conjunto de coisas que poderiam ser valiosas pra nós, como nossas amizades, nosso gosto pelo trabalho, nosso amor por nós mesmas e passamos a ser gueixas na vida e na relação com os homens.

    As “memórias de uma gueixa” não são apenas as memórias de uma japonesa do séc. XX. São, sim, as memórias de muitas de nós, mulheres do presente, que ainda não perceberam que os tempos mudaram e que as mulheres hoje não precisam ser gueixas para terem um lugar no mundo.

Texto escrito em abril de 2006.

2 comentários:

  1. Adorei o texto, nos faz refletir. Realmente as meninas são criadas pensando que serão felizes quando estiverem num relacionamento, quando na verdade podemos ser felizes por nos mesmas, que somos capaz de fazer tudo sozinhas. e o relacionamento seria um complemento e nunca a saída.
    um abraço, bjos Fabi

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  2. Excelente! Feliz por vc ser uma buscadora de si mesma sem precisar ter ou querer para ser. Interessante também pois serve para eu como homem, procurando um lugar à luz, de paz e harmonia. Obrigada por ter permitido conhecer vc, especial ser humano e uma bela e incansável buscadora.

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