Ao despertar, senti que aquele dia
seria difícil. Minha mente estava inquieta e parecia não ter descansado. Mesmo
tendo ido dormir tarde na noite anterior, acordei lá pelas quatro da madrugada
e não consegui mais pregar o olho, talvez pela ansiedade de ter que apresentar,
naquela manhã, uma proposta de trabalho para um grupo de alemães que queriam
iniciar um empreendimento em minha cidade.
Tomei um banho rápido e, em seguida,
saí apressado, sem nem mesmo tomar café. No trajeto até à empresa, peguei um
congestionamento por causa de uma batida de carro. Comecei a ficar nervoso,
pois queria chegar mais cedo para rever o material da apresentação. Num
impulso, liguei o som e comecei a procurar um cd. Entre os cds que eu tinha no
carro, encontrei um, para minha surpresa, que fora presente de um grande amigo
da adolescência, o Paulo. Tentei lembrar porque aquele estava ali, mas não
consegui. Coloquei o cd e, à medida em que escutava aquelas músicas, comecei a
rememorar alguns momentos em que passamos juntos.
O Paulo sempre fora o
avesso de mim. Enquanto eu era calmo, introvertido e, às vezes, até acomodado,
ele era hiperativo e estava sempre inventando algo para nos divertirmos. Lembro
do primeiro porre que tomei por causa de uma aposta que ele me fez fazer com um
amigo nosso que também não bebia. Ele disse que queria ver quem de nós era
homem suficiente para chegar numa guria que, na época, era considerada uma das
mais gostosas da escola. Naquela noite, no bar, ela estava com as amigas, pois
recém tinha dado um fora no namorado. O Paulo, para nos encorajar, nos levou
até o carro e nos ofereceu uma cachaça braba que ele deixava sempre lá, para as
emergências. Bebemos quase toda a garrafa e nosso amigo passou mal logo no
terceiro copo. Eu fiquei tonto, mas ainda consciente, fui até a guria, enquanto
o Paulo chegou na amiga dela. Conversamos um tempão, não lembro muito bem o
quê, e depois fomos dançar. Naquela noite eu me senti outra pessoa, menos
travada e mais segura. Depois de dançar duas músicas, taquei um beijo na guria
e consegui convencê-la a ir pro carro comigo. Mas, para meu azar, depois de uns
tantos amassos, foi me dando um embrulho no estômago que não consegui agüentar.
Abri a porta do carro e vomitei tudo que tinha comido e bebido horas antes.
Depois daquele dia, a guria nunca mais falou comigo e eu e o Paulo, durante
anos, rimos muito, todas as vezes que relembrávamos essa história.
Aqueles minutos em que me
perdi naquela memória passaram rápido e logo me vi chegando à empresa e
voltando a minha realidade. Entrei no prédio, cumprimentei a secretária e pedi
que preparasse a sala para a reunião. Foi quando abri a pasta para pegar o
material da apresentação e percebi que o havia deixado em casa. Não acreditei.
A raiva foi tanta que soltei um palavrão que ecoou na sala e no corredor, e
todos me olharam assustados. Pedi desculpas e, sem pensar muito, saí correndo,
rumo ao meu apartamento.
No caminho de casa,
coloquei novamente o cd e o trajeto me pareceu mais suave. Incrivelmente,
aquela música me acalmou e parece que cheguei em casa diferente. Lembrei do
Paulo e pensei que se ele estivesse no meu lugar, ele não estaria tão ansioso.
Afinal, eram apenas 9h da manhã e a reunião estava marcada para às 11h. Relaxei
e, ao invés de pegar meu material e sair correndo, decidi preparar um café e
aparar minha barba de novo para retirar alguns fiapos de pêlo que ainda
restaram.
Diante do espelho e ouvindo aquela
música, comecei a olhar pra mim mesmo. Percebi minhas olheiras profundas, fruto
não só daquela noite, mas de várias madrugadas mal dormidas ou com insônia.
Enquanto me barbeava e observava meu rosto, vi um filme da minha vida passar na
minha frente.
Comecei na firma do meu pai aos 18
anos e aos 27 já era diretor. Sempre fiz o que meus pais me disseram para fazer
e fui trilhando a carreira de empresário sem pensar muito sobre o que eu
queria. Parecia natural, um dia, assumir a empresa do meu pai e repetir a sua
trajetória. Para isso, cursei Administração de Empresas, fiz MBA e penso fazer
uma pós na área de Marketing antes completar os 30. Me considero um
profissional bem-sucedido, apesar de ser tão jovem. Meu trabalho me possibilita
andar com um Audi 2007, ter muitas mulheres disputando minha atenção, viajar ao
final do ano para todo Brasil e para o exterior e ter meu próprio apartamento,
entre outras coisas que o dinheiro pode comprar.
Olhando-me no espelho, enxerguei um
Víctor que não era nada daquilo que eu queria para mim na adolescência. Me
senti envelhecendo, sem energia e sem nenhuma satisfação. Ao mesmo tempo, senti
raiva de mim mesmo e pensei que tinha que parar com aquele melodrama e voltar
para a empresa. Peguei a lâmina de barbear, decidido a encerrar o assunto,
passei no meu rosto e, sem querer, me cortei.
Naquele momento, quando o sangue
escorreu, todas aquelas lembranças voltaram novamente e me senti frágil e
vulnerável. Fiquei sem reação vendo aquele sangue jorrar e, de repente, sem
saber como, nem porque, comecei a chorar. Talvez tenha chorado não pela dor do
corte, mas pela dor de não viver minha própria vida e por me sentir mais morto
do que vivo. Chorei um choro triste, angustiado, desesperado. Chorei como um
bebê pedindo o colo da mãe e como um faminto que há dias não come, nem bebe.
Por fim, chorei como alguém que se vê encurralado diante do dilema de ser o que
quer ser e de ser o que os outros querem que seja.
Enquanto o
sangue escorria e minhas lágrimas limpavam minha alma e acalentavam meu
espírito, eu fui caindo devagar no chão do banheiro e não consegui mais levantar.
Não sei quanto tempo fiquei ali, jogado no mundo. Nada mais importava naquele
momento a não ser eu, meu corpo e minha vida.
Pensei em algo que nunca
havia pensado antes, que um dia eu morreria e não importa o quão indispensável
eu fosse a minha empresa, eu seria substituído no dia seguinte a minha saída.
Ninguém poderia viver por
mim os últimos momentos de minha vida. Me imaginei sozinho, mesmo rodeado de
gente, numa cama de hospital. Pensei em quem eu queria que estivesse comigo
naquele momento e só consegui ver uma pessoa. Era o Paulo, meu amigo da
adolescência, meu companheiro inseparável na melhor etapa da minha vida.
Lembrei de alguns daqueles momentos em que passamos juntos e me enxerguei
sorrindo, fazendo piadas, brincando com o Paulo e com as gurias. Lembrei que
sua escolha de vida fora diferente da minha. Paulo havia decidido conhecer o
mundo antes de iniciar sua carreira profissional. Ele passara anos na Europa
viajando e conhecendo lugares novos. Para se manter, trabalhava como camareiro
de hotel, garçom e até ajudante de cozinha. Nos correspondíamos diariamente por
e-mail, mas, aos poucos, nossas perspectivas começaram a ficar tão diferentes
que não conseguíamos mais dialogar. Com o tempo, fomos nos distanciando tanto,
dando desculpas por não respondermos um ao outro com tanta regularidade que,
por fim, perdemos o contato. Me dei conta que Paulo
decidira viver a vida, fazendo qualquer coisa que estivesse ao seu alcance para
se sentir feliz.
Onde estaria, o que
estaria fazendo, será que se casara, ainda estaria vivo? Tive vontade de
reencontrá-lo.
De repente, o celular
tocou e voltei, mais uma vez, à realidade. Percebi que meu corte parara de
sangrar e que eu, sem me dar conta, havia estancado o sangue com a toalha de
rosto que estava no balcão. Achei aquilo incrível, porque não lembrava
de ter feito nada, só de ter caído no chão. Pensei que mesmo não tendo cuidado
de mim nos últimos tempos, havia uma força interna que buscava me proteger, me
cuidar e me fazer viver.
Deixei o celular tocando até cessar e
fui levantando devagar. Me sentia confuso, sem saber o que fazer. Muitos
desejos vieram à tona. Senti vontade de deixar tudo - meu apartamento,
namorada, emprego, carreira - para trás e viajar sem destino e sem data para
retornar. Preparei o café, meio zonzo, e, em seguida, saí sem rumo, um tanto
atordoado, pensando no que faria da minha vida.
Rodei um tempo pelos arredores da
cidade, sem saber se voltava ou não para a empresa. Cheguei a pensar em entrar
numa agência de viagens e comprar uma passagem só de ida para um lugar
qualquer, mas o celular tocou novamente. Era minha secretária, provavelmente
aflita que eu não havia aparecido até àquela hora. Olhei no relógio e já eram
quase onze. Atendi o celular e falei, com uma voz que parecia não ser eu mesmo,
que não iria trabalhar e que ela inventasse uma desculpa e cancelasse a reunião
com os alemães. Quando desliguei, me senti aliviado, certo de que tinha tomado
a melhor decisão.
No trajeto ainda sem rumo, liguei pra
mãe do Paulo e ela, muito surpresa com o meu telefonema, me informou que ele
estava na cidade passando uns dias porque o pai, separado da mãe, havia
falecido. Senti uma emoção enorme, um misto de dor e alegria, porque o Paulo
era muito ligado ao pai. Quando ia perguntar seu telefone, a ligação caiu.
Tentei ligar novamente, mas o celular não deu sinal de linha.
Continuei dirigindo e, quando me dei
conta, estava indo em direção a uma represa fora da cidade. Chegando lá,
estacionei o carro e segui caminhando, aproveitando para respirar o ar puro
daquele lugar e ouvir os sons dos pássaros, das águas correndo e dos cães que
latiam em uma casa próxima ao local. Percebi o quanto aqueles sons diferiam da
barulheira do centro da cidade e da empresa onde trabalhava.
Avistei de longe o bosque de eucaliptos,
onde eu e Paulo, às vezes, íamos fumar, beber e conversar. Lembrei que o bosque
era nosso local preferido, o melhor lugar para estar quando nos sentíamos
perdidos, confusos e buscando um contato com a natureza.
Quando entrei no bosque, escolhi um
lugar e me deitei sobre as folhas secas para contemplar as árvores e olhar para
o céu azul. No início, fui tomado por um sentimento de arrependimento, por
pensar em quanto havia desperdiçado meu tempo de vida. Pensei no Paulo e no
tempo em que ficamos separados.
Aos poucos, porém, lembrei
que tinha apenas 28 anos e que minha vida estava apenas começando. Fiquei ali
por horas, deitado simplesmente. Depois, olhei para a água do rio que corria
abaixo da represa e senti uma vontade enorme de me atirar dentro dele. Por um
momento achei um absurdo, mas em seguida, sem pestanejar, tirei minha roupa e
corri em direção ao rio. Era início de outono, mas o dia estava quente, bem
atípico para esta época do ano. Me joguei por inteiro e senti imediatamente
aquela água gelada, me dando arrepios no corpo. Nadei, nadei até que não tive
mais forças e voltei para o bosque.
Quando cheguei, senti algo
diferente no ar e procurei minhas coisas. Olhei para todos os lados e pensei
que havia entrado pelo lugar errado. Caminhei nu durante alguns minutos até que
percebi que haviam roubado tudo - meu celular, as chaves do carro, minhas
roupas e a carteira. Comecei a ficar desesperado, pensando em como sairia dali.
Teria que ir até a casa onde ouvira os cachorros e pedir ajuda. Mas como?
Ninguém me receberia e, provavelmente, os cães viriam me atacar. Procurei mais
um pouco minhas coisas e por ver que não tinha outra saída, resolvi enfrentar a
situação. Enquanto caminhava, senti que alguém me seguia e comecei a ficar com
medo.
De repente, alguém gritou
e olhei para trás. Era um homem que vinha, que nem louco, correndo, também nu,
na minha direção. Por alguns segundos minha adrenalina foi a mil, mas logo em
seguida vi que aquele homem, com minhas roupas nos braços, era o Paulo, que
dava gargalhadas, imaginando o que eu poderia estar pensando. Soube, depois,
que ele, há dias, vinha para o bosque meditar, tentando aliviar a dor da morte
do pai.
Enquanto Paulo se
aproximava, meu coração começou a bater rápido, num compasso assustador e
estranho. Senti meu corpo todo se aquecer e, para minha completa surpresa,
percebi o quanto o amava. O Paulo era a parte de mim que havia se perdido e que
agora, depois de tanto tempo, retornava.
Nos abraçamos assim,
completamente nus, e nunca mais nos separamos.
Texto escrito em junho de 2007.