sábado, 28 de agosto de 2021

O TOPO NÃO É O FIM

  

Já vi o Everest de cima

Já viajei de mochila

Já vivi no Sul

Já mudei pro Norte

Já estive nos “extremos”

Já vi o “encontro das águas”

Já fiz sobrevivência na selva

Já atravessei a Transamazônica

Já fui professora universitária

Já ensinei pra crianças

Já coordenei uma Sanga

Já liderei vários grupos

Já fiz o Processo Hoffman

Já acumulei muitos mantras

Já fiz a Grande Perfeição

Já fui a “boa moça”

Já levantei bandeiras

Já fui casada

Já fui solteira

Já tive “grandes amores”

Já vivi grandes decepções amorosas

Já realizei meu sonho de uma casa no alto de um morro

Já tive uma filha

Já publiquei meus textos

Já plantei várias árvores

Já fui Carliza

Já fui Cacá

Já ensinei e já aprendi muitas coisas

 

Agora,

só quero aquietar minha mente

ser feliz com cada momento

aceitar as coisas de cada dia

acolher as pessoas

acolher a mim mesma

respirar calmamente

viver o presente

 

O topo não é o fim

Onde imaginamos que todas as promessas irão se realizar

mas é exatamente o ponto

onde e quando

decidimos PARAR DE RODAR

MEU OUTRO

 Ao despertar, senti que aquele dia seria difícil. Minha mente estava inquieta e parecia não ter descansado. Mesmo tendo ido dormir tarde na noite anterior, acordei lá pelas quatro da madrugada e não consegui mais pregar o olho, talvez pela ansiedade de ter que apresentar, naquela manhã, uma proposta de trabalho para um grupo de alemães que queriam iniciar um empreendimento em minha cidade.

Tomei um banho rápido e, em seguida, saí apressado, sem nem mesmo tomar café. No trajeto até à empresa, peguei um congestionamento por causa de uma batida de carro. Comecei a ficar nervoso, pois queria chegar mais cedo para rever o material da apresentação. Num impulso, liguei o som e comecei a procurar um cd. Entre os cds que eu tinha no carro, encontrei um, para minha surpresa, que fora presente de um grande amigo da adolescência, o Paulo. Tentei lembrar porque aquele estava ali, mas não consegui. Coloquei o cd e, à medida em que escutava aquelas músicas, comecei a rememorar alguns momentos em que passamos juntos.

O Paulo sempre fora o avesso de mim. Enquanto eu era calmo, introvertido e, às vezes, até acomodado, ele era hiperativo e estava sempre inventando algo para nos divertirmos. Lembro do primeiro porre que tomei por causa de uma aposta que ele me fez fazer com um amigo nosso que também não bebia. Ele disse que queria ver quem de nós era homem suficiente para chegar numa guria que, na época, era considerada uma das mais gostosas da escola. Naquela noite, no bar, ela estava com as amigas, pois recém tinha dado um fora no namorado. O Paulo, para nos encorajar, nos levou até o carro e nos ofereceu uma cachaça braba que ele deixava sempre lá, para as emergências. Bebemos quase toda a garrafa e nosso amigo passou mal logo no terceiro copo. Eu fiquei tonto, mas ainda consciente, fui até a guria, enquanto o Paulo chegou na amiga dela. Conversamos um tempão, não lembro muito bem o quê, e depois fomos dançar. Naquela noite eu me senti outra pessoa, menos travada e mais segura. Depois de dançar duas músicas, taquei um beijo na guria e consegui convencê-la a ir pro carro comigo. Mas, para meu azar, depois de uns tantos amassos, foi me dando um embrulho no estômago que não consegui agüentar. Abri a porta do carro e vomitei tudo que tinha comido e bebido horas antes. Depois daquele dia, a guria nunca mais falou comigo e eu e o Paulo, durante anos, rimos muito, todas as vezes que relembrávamos essa história.

Aqueles minutos em que me perdi naquela memória passaram rápido e logo me vi chegando à empresa e voltando a minha realidade. Entrei no prédio, cumprimentei a secretária e pedi que preparasse a sala para a reunião. Foi quando abri a pasta para pegar o material da apresentação e percebi que o havia deixado em casa. Não acreditei. A raiva foi tanta que soltei um palavrão que ecoou na sala e no corredor, e todos me olharam assustados. Pedi desculpas e, sem pensar muito, saí correndo, rumo ao meu apartamento.

No caminho de casa, coloquei novamente o cd e o trajeto me pareceu mais suave. Incrivelmente, aquela música me acalmou e parece que cheguei em casa diferente. Lembrei do Paulo e pensei que se ele estivesse no meu lugar, ele não estaria tão ansioso. Afinal, eram apenas 9h da manhã e a reunião estava marcada para às 11h. Relaxei e, ao invés de pegar meu material e sair correndo, decidi preparar um café e aparar minha barba de novo para retirar alguns fiapos de pêlo que ainda restaram.

Diante do espelho e ouvindo aquela música, comecei a olhar pra mim mesmo. Percebi minhas olheiras profundas, fruto não só daquela noite, mas de várias madrugadas mal dormidas ou com insônia. Enquanto me barbeava e observava meu rosto, vi um filme da minha vida passar na minha frente.

Comecei na firma do meu pai aos 18 anos e aos 27 já era diretor. Sempre fiz o que meus pais me disseram para fazer e fui trilhando a carreira de empresário sem pensar muito sobre o que eu queria. Parecia natural, um dia, assumir a empresa do meu pai e repetir a sua trajetória. Para isso, cursei Administração de Empresas, fiz MBA e penso fazer uma pós na área de Marketing antes completar os 30. Me considero um profissional bem-sucedido, apesar de ser tão jovem. Meu trabalho me possibilita andar com um Audi 2007, ter muitas mulheres disputando minha atenção, viajar ao final do ano para todo Brasil e para o exterior e ter meu próprio apartamento, entre outras coisas que o dinheiro pode comprar.

Olhando-me no espelho, enxerguei um Víctor que não era nada daquilo que eu queria para mim na adolescência. Me senti envelhecendo, sem energia e sem nenhuma satisfação. Ao mesmo tempo, senti raiva de mim mesmo e pensei que tinha que parar com aquele melodrama e voltar para a empresa. Peguei a lâmina de barbear, decidido a encerrar o assunto, passei no meu rosto e, sem querer, me cortei.

Naquele momento, quando o sangue escorreu, todas aquelas lembranças voltaram novamente e me senti frágil e vulnerável. Fiquei sem reação vendo aquele sangue jorrar e, de repente, sem saber como, nem porque, comecei a chorar. Talvez tenha chorado não pela dor do corte, mas pela dor de não viver minha própria vida e por me sentir mais morto do que vivo. Chorei um choro triste, angustiado, desesperado. Chorei como um bebê pedindo o colo da mãe e como um faminto que há dias não come, nem bebe. Por fim, chorei como alguém que se vê encurralado diante do dilema de ser o que quer ser e de ser o que os outros querem que seja. 

Enquanto o sangue escorria e minhas lágrimas limpavam minha alma e acalentavam meu espírito, eu fui caindo devagar no chão do banheiro e não consegui mais levantar. Não sei quanto tempo fiquei ali, jogado no mundo. Nada mais importava naquele momento a não ser eu, meu corpo e minha vida.

Pensei em algo que nunca havia pensado antes, que um dia eu morreria e não importa o quão indispensável eu fosse a minha empresa, eu seria substituído no dia seguinte a minha saída.

Ninguém poderia viver por mim os últimos momentos de minha vida. Me imaginei sozinho, mesmo rodeado de gente, numa cama de hospital. Pensei em quem eu queria que estivesse comigo naquele momento e só consegui ver uma pessoa. Era o Paulo, meu amigo da adolescência, meu companheiro inseparável na melhor etapa da minha vida. Lembrei de alguns daqueles momentos em que passamos juntos e me enxerguei sorrindo, fazendo piadas, brincando com o Paulo e com as gurias. Lembrei que sua escolha de vida fora diferente da minha. Paulo havia decidido conhecer o mundo antes de iniciar sua carreira profissional. Ele passara anos na Europa viajando e conhecendo lugares novos. Para se manter, trabalhava como camareiro de hotel, garçom e até ajudante de cozinha. Nos correspondíamos diariamente por e-mail, mas, aos poucos, nossas perspectivas começaram a ficar tão diferentes que não conseguíamos mais dialogar. Com o tempo, fomos nos distanciando tanto, dando desculpas por não respondermos um ao outro com tanta regularidade que, por fim, perdemos o contato. Me dei conta que Paulo decidira viver a vida, fazendo qualquer coisa que estivesse ao seu alcance para se sentir feliz.

Onde estaria, o que estaria fazendo, será que se casara, ainda estaria vivo? Tive vontade de reencontrá-lo.

De repente, o celular tocou e voltei, mais uma vez, à realidade. Percebi que meu corte parara de sangrar e que eu, sem me dar conta, havia estancado o sangue com a toalha de rosto que estava no balcão. Achei aquilo incrível, porque não lembrava de ter feito nada, só de ter caído no chão. Pensei que mesmo não tendo cuidado de mim nos últimos tempos, havia uma força interna que buscava me proteger, me cuidar e me fazer viver.

Deixei o celular tocando até cessar e fui levantando devagar. Me sentia confuso, sem saber o que fazer. Muitos desejos vieram à tona. Senti vontade de deixar tudo - meu apartamento, namorada, emprego, carreira - para trás e viajar sem destino e sem data para retornar. Preparei o café, meio zonzo, e, em seguida, saí sem rumo, um tanto atordoado, pensando no que faria da minha vida.

Rodei um tempo pelos arredores da cidade, sem saber se voltava ou não para a empresa. Cheguei a pensar em entrar numa agência de viagens e comprar uma passagem só de ida para um lugar qualquer, mas o celular tocou novamente. Era minha secretária, provavelmente aflita que eu não havia aparecido até àquela hora. Olhei no relógio e já eram quase onze. Atendi o celular e falei, com uma voz que parecia não ser eu mesmo, que não iria trabalhar e que ela inventasse uma desculpa e cancelasse a reunião com os alemães. Quando desliguei, me senti aliviado, certo de que tinha tomado a melhor decisão. 

No trajeto ainda sem rumo, liguei pra mãe do Paulo e ela, muito surpresa com o meu telefonema, me informou que ele estava na cidade passando uns dias porque o pai, separado da mãe, havia falecido. Senti uma emoção enorme, um misto de dor e alegria, porque o Paulo era muito ligado ao pai. Quando ia perguntar seu telefone, a ligação caiu. Tentei ligar novamente, mas o celular não deu sinal de linha.

Continuei dirigindo e, quando me dei conta, estava indo em direção a uma represa fora da cidade. Chegando lá, estacionei o carro e segui caminhando, aproveitando para respirar o ar puro daquele lugar e ouvir os sons dos pássaros, das águas correndo e dos cães que latiam em uma casa próxima ao local. Percebi o quanto aqueles sons diferiam da barulheira do centro da cidade e da empresa onde trabalhava.

Avistei de longe o bosque de eucaliptos, onde eu e Paulo, às vezes, íamos fumar, beber e conversar. Lembrei que o bosque era nosso local preferido, o melhor lugar para estar quando nos sentíamos perdidos, confusos e buscando um contato com a natureza.

Quando entrei no bosque, escolhi um lugar e me deitei sobre as folhas secas para contemplar as árvores e olhar para o céu azul. No início, fui tomado por um sentimento de arrependimento, por pensar em quanto havia desperdiçado meu tempo de vida. Pensei no Paulo e no tempo em que ficamos separados.

Aos poucos, porém, lembrei que tinha apenas 28 anos e que minha vida estava apenas começando. Fiquei ali por horas, deitado simplesmente. Depois, olhei para a água do rio que corria abaixo da represa e senti uma vontade enorme de me atirar dentro dele. Por um momento achei um absurdo, mas em seguida, sem pestanejar, tirei minha roupa e corri em direção ao rio. Era início de outono, mas o dia estava quente, bem atípico para esta época do ano. Me joguei por inteiro e senti imediatamente aquela água gelada, me dando arrepios no corpo. Nadei, nadei até que não tive mais forças e voltei para o bosque.

Quando cheguei, senti algo diferente no ar e procurei minhas coisas. Olhei para todos os lados e pensei que havia entrado pelo lugar errado. Caminhei nu durante alguns minutos até que percebi que haviam roubado tudo - meu celular, as chaves do carro, minhas roupas e a carteira. Comecei a ficar desesperado, pensando em como sairia dali. Teria que ir até a casa onde ouvira os cachorros e pedir ajuda. Mas como? Ninguém me receberia e, provavelmente, os cães viriam me atacar. Procurei mais um pouco minhas coisas e por ver que não tinha outra saída, resolvi enfrentar a situação. Enquanto caminhava, senti que alguém me seguia e comecei a ficar com medo.

De repente, alguém gritou e olhei para trás. Era um homem que vinha, que nem louco, correndo, também nu, na minha direção. Por alguns segundos minha adrenalina foi a mil, mas logo em seguida vi que aquele homem, com minhas roupas nos braços, era o Paulo, que dava gargalhadas, imaginando o que eu poderia estar pensando. Soube, depois, que ele, há dias, vinha para o bosque meditar, tentando aliviar a dor da morte do pai.

Enquanto Paulo se aproximava, meu coração começou a bater rápido, num compasso assustador e estranho. Senti meu corpo todo se aquecer e, para minha completa surpresa, percebi o quanto o amava. O Paulo era a parte de mim que havia se perdido e que agora, depois de tanto tempo, retornava.     

Nos abraçamos assim, completamente nus, e nunca mais nos separamos.   


Texto escrito em junho de 2007.  

domingo, 22 de agosto de 2021

TAPETE VERMELHO


A primeira vez em que a vi, ela andava sobre um tapete vermelho. Estava linda, sorridente, seus cabelos pareciam cachos. Meus olhos enxergaram uma rainha. Ela não era mais tão jovem, sua maturidade estava estampada no seu rosto, na sua postura, na maneira como caminhava. Seu andar era nobre e elegante. Ela vestia uma saia longa, floreada, com babados brancos e uma blusa e um colete bordado por cima. Usava uma bolsa, de couro cru, trançado, transpassada pelo tórax. Fiquei embriagado em ver aquela cena que se passava como um filme em câmera lenta. Aqueles poucos segundos em que ela desfilou, para mim, pareceram horas, até que, de repente, ela entrou numa sala e sumiu diante de meus olhos.

Naquele dia voltei para casa e não consegui dormir, imaginando aquela mulher. Não lembrava de ter sentido isso antes, muito menos por uma mulher mais velha. Comecei a imaginar seu corpo, que não era como os que eu conhecia. A pele era branca, macia e aveludada. Os seios eram fartos e flácidos, e os mamilos rosados me convidavam a tocá-los com a boca. Os pêlos, loiros, brilhavam com a luminosidade. Ela estava ali, parada, como se pousasse nua, para mim. Eu era o artista e ela a musa inspiradora. Meu corpo gritou de tanta excitação e dormi o sono dos deuses.

No dia seguinte despertei determinado a encontrar aquela mulher. Tinha que descobrir quem era, o que fazia e se eu teria alguma chance de me aproximar. Fui novamente ao prédio onde a tinha visto. Percorri todas as salas de aula, olhando discretamente pelos vidros das portas. Quando já estava desistindo, a enxerguei pelo vidro. Ela estava de pé, falando sobre arte, algo que não consegui entender perfeitamente. Mas consegui ouvir sua voz... fina, doce, delicada. Me informei na secretaria sobre o curso e consegui descobrir o seu nome. Clara. Era o nome perfeito para ela. Clara... como a luz, tudo que ela parecia simbolizar para mim. Por um breve instante, senti uma distância entre nós, algo impossível, mas foi apenas um pensamento passageiro. Meu desejo era tão forte que sentia que nada seria um obstáculo para mim.  Mas como faria para me aproximar?

Durante uma semana tentei seguir seus passos. Atrasei-me em várias aulas para tentar observá-la e descobrir um meio de chegar nela. Observei-a por vários dias, de longe, e a vi conversando, comendo, caminhando. Aos poucos fui me apaixonando, uma paixão louca, arrebatadora, algo além do meu controle. Até que um dia, eu consegui me aproximar.

Era um final de tarde e eu havia chegado mais cedo. Desci do ônibus e caminhei em direção ao prédio onde teria aula. Quando me aproximei do pátio central do campus, lá estava ela, sentada num banquinho, em posição de meditação, de olhos fechados. O sol batia em seu rosto e ela parecia absorver toda aquela energia. Estava radiante, iluminada. Não sei o que deu em mim, não sei de onde tirei tanta coragem. Simplesmente me aproximei e sentei ao seu lado. Percebi que ela sentiu a minha presença, mas não se moveu. Ficamos ali, quietos, sentados um ao lado do outro, até o sol se por. Aqueles minutos, para mim, foram eternos. 

Ela se levantou, mas antes de ir embora, olhou pra mim e meu deu um sorriso. Quis dizer algo, mas não consegui emitir som algum. Ela saiu e eu fiquei olhando, me sentindo quase como um bobo, de boca aberta, olhando ela desaparecer novamente. Senti raiva de mim. Eu poderia ter dito algo, ter escrito um bilhete, deixado meu telefone, mas nada. Que idiota, pensei.

Na semana seguinte, contei o acontecido para um grande amigo e ele agiu como um pai, me passando um sermão que tive que engolir a seco. “Você está louco, cara? Uma professora da universidade jamais vai dar bola pra um aluno. Ela pode até perder o emprego. Desista disso, tu achas que uma mulher como ela vai olhar pra um guri como tu? Te enxerga, cara! Além disso, que graça tem ficar com uma mulher mais velha? Com certeza, com quarenta anos, ela nem goza mais. O que você quer com uma quarentona, toda caída? E pior ainda, vai que tu realmente começa a amar essa mulher, já pensou o problemão? E se ela tiver filhos, tu ganha ela e, de quebra, um kit-família. E se for casada? Olha onde tu tá te metendo? E o teu futuro? Tira isso da tua cabeça.” Aquele papo realmente me deixou desanimado. Saí da conversa desiludido, pensando seriamente no que ele tinha falado. Vi que realmente não tinha nenhuma chance e que talvez não valesse a pena.

Mas depois de um tempo, o desejo voltou e quase esqueci o que ele havia me dito. Fui de novo atrás dela e acabei conseguindo o seu e-mail. Me cadastrei no hotmail com o título “leia por favor...eu te amo” e enviei uma mensagem pra ela que dizia:

 

“Te amo demais!

Preciso dizer o quanto amo você!

Às vezes você passa e eu fico te olhando, morro de medo de falar contigo e você me rejeitar.

Espero que você pelo menos se interesse em ler o texto que fiz, nele pelo menos eu digo quem sou. MAS POR FAVOR, NÃO FIQUEI COM RAIVA DE MIM!”

 

Em anexo coloquei um texto em que contava tudo que tinha acontecido até então e, por fim, dizia meu nome e telefone. Todo dia abria meus e-mails várias vezes ao dia, na expectativa de que ela me respondesse. Esperei a resposta por várias semanas, mas não obtive resposta. Nunca soube se ela leu meu e-mail e se conseguiu abrir o anexo.

Passaram-se alguns meses e eu, aos poucos, fui tirando-a da minha cabeça. Com o tempo, vi que era tudo uma fantasia e que eu devia ter estado louco em pensar que podia ter um relacionamento com uma mulher muito mais velha. O semestre terminou e logo em seguida arrumei uma namorada da minha idade.

No dia da matrícula, peguei a lista de disciplinas e encontrei algumas disciplinas de outros cursos, que serviriam como eletivas. Entre elas, encontrei uma disciplina do Departamento de Artes – Arte contemporânea - e, sem pensar muito, fiz a matrícula. O coordenador, que me conhecia, perguntou se eu sabia do que tratava a disciplina e eu disse que não, mas que estava curioso para saber. Acho que ele não entendeu, mas também não questionou mais.

No primeiro dia do semestre, fui para a aula eufórico. Era o dia da tal disciplina eletiva. Cheguei cedo e me sentei bem atrás. Começaram a chegar os colegas, a maioria mulheres. Fui ficando tenso, meu coração batia forte e minhas mãos suavam. Passados alguns minutos do início da aula, uma moça da secretaria veio avisar que a professora se atrasara porque o pneu do seu carro havia furado, mas que ela chegaria para a aula. Como estava muito ansioso, saí da sala e fui tomar um café.

No corredor, alguns alunos estavam estendendo um tapete vermelho, o mesmo tapete vermelho em que “a” vi caminhando, como uma rainha, pela primeira vez. Perguntei aos alunos o que era aquilo e eles me responderam que estavam organizando um evento formal, de uma disciplina sobre cerimonial, que tinham cursado nas férias. Aquilo me impressionou. Era tanta coincidência! Andei sobre o tapete com a sensação de que a encontraria naquela noite.

Ao retornar para a sala, à medida em que me aproximava, ouvi a voz da professora de longe e soube que ela havia chegado. Não consegui reconhecer se era a voz de Clara. Quando cheguei, tive uma surpresa. A professora não era a mesma... mas era tão ou mais linda que ela. O que aconteceu, não sei. Acho que foi o tapete vermelho.


Texto escrito em junho de 2007.

sábado, 21 de agosto de 2021

GUEIXAS DE HOJE

Assisti recentemente ao filme Memórias de uma gueixa e saí do cinema pensando muito. O filme nos traz uma realidade que parece, a princípio, muito distante de nós, no tempo e no espaço. Olhamos para aquelas mulheres e chegamos a ter compaixão por elas, por não terem a liberdade que nós, mulheres ocidentais, do século XXI, temos. Pensamos que não temos nada em comum com elas. No entanto, se olharmos um pouquinho mais a fundo o nosso comportamento, as nossas ideias e sentimentos, veremos que não somos assim tão diferentes das gueixas do século passado.

Muitas mulheres, hoje, ainda pensam que para “ter um lugar no mundo”, é necessário ter um homem ao lado. Quando estão “sem homem”, dizem que estão sozinhas.

Chiou, a protagonista do filme, já sem esperança de retornar à sua casa e totalmente desiludida, encontra um sentido para sua vida ao cruzar com um homem, o “presidente”, que lhe oferece um doce e diz a ela que quer ver um sorriso nos seus lábios da próxima vez em que se encontrarem.

Para essa menina de seis anos, esse é um momento mágico, em que percebe que ser gueixa lhe traria a possibilidade de estar com o presidente e assim, “ter um lugar no mundo”. Toda sua vida, a partir desse momento, é direcionada para se transformar em gueixa e reencontrar aquele homem. Ela pega todo o dinheiro que dispõe, que daria para alimentá-la por um mês, e oferece no templo, pedindo a seus deuses que a ajudem a realizar seu desejo.

Muitas de nós ainda pensam que o ideal de vida de uma mulher é encontrar um grande amor, um homem que a escolha e que possa provê-la, protegê-la, enfim, dar-lhe segurança por toda vida. Somos educadas para casarmos e constituirmos uma família. Pensamos, incrivelmente, que essa é a nossa única possibilidade, a nossa única escolha. Quando não conseguimos atingir esse ideal, quando não encontramos a pessoa certa, ou quando o namoro ou o casamento se desfaz, ficamos perdidas, desesperadas, pensando muitas vezes que a vida não tem mais sentido.

Chiou, no filme, foi vendida pelos pais, junto com a irmã, às donas do “okaia”, o lugar onde as gueixas moravam e viviam toda a sua vida, sem a liberdade de ir e vir. Quantas de nós ainda são “vendidas” por nossos pais e mães quando eles nos fazem crer que precisamos encontrar um marido para sair de casa ou quando nos dizem que temos que encontrar um cara “bem de vida”, que tenha condições de nos dar, pelo menos, aquilo que eles nos deram?

Durante a guerra, Chiou, já uma mulher, deixa o “okaia” e a vida de gueixa e vai trabalhar numa fábrica de quimonos. Todo esse tempo em que passou na fábrica, para ela, foi um tempo morto, um tempo sem vida, um tempo sem sentido. Embora tivesse liberdade para ser quem quisesse, para se apaixonar, para viver uma outra vida, seu único valor, seu único possível era ser gueixa e esperar até que um homem daqueles que um dia a disputaram pudesse ser o seu “danna”, ou seja, o seu protetor, o seu mantenedor.

Assim como as gueixas, muitas de nós ainda vivem suas vidas à espera de um “danna”, um homem que possa nos dar um lugar no mundo. Dessa perspectiva, todas as outras possibilidades são inexistentes, embora estejam ao alcance de nós. Podemos fazer muitas outras coisas, podemos ser felizes de muitas outras maneiras, mas não enxergamos isso, porque nossas mentes estão à espera, presas numa fantasia que criamos para nós mesmas.

Quando, da nossa perspectiva, temos a “sorte” de encontrarmos um homem, acreditamos, como as gueixas, que temos que fazer tudo para que ele fique conosco e, assim, deixamos de ser nós mesmas, para ser a namorada de, a esposa de, a escolhida por.

Vivemos nossas vidas como gueixas treinadas para agradar os homens, para servi-los, para lhes dar prazer e muitas vezes negamos nossa própria vida, nossos valores, nossas escolhas, nossos sonhos, nossos prazeres. Abrimos mão de um conjunto de coisas que poderiam ser valiosas pra nós, como nossas amizades, nosso gosto pelo trabalho, nosso amor por nós mesmas e passamos a ser gueixas na vida e na relação com os homens.

    As “memórias de uma gueixa” não são apenas as memórias de uma japonesa do séc. XX. São, sim, as memórias de muitas de nós, mulheres do presente, que ainda não perceberam que os tempos mudaram e que as mulheres hoje não precisam ser gueixas para terem um lugar no mundo.

Texto escrito em abril de 2006.

É PERMITIDO ENVELHECER

Hoje é o primeiro dia da licença de três meses que antecede a minha aposentadoria. É muito bom poder realizar a minha rotina antiga - medita...