segunda-feira, 4 de julho de 2022

OS LUGARES QUE NOS ASSUSTAM

Faz cinco meses que saí da cidade para morar no interior. Era um sonho antigo. Já tive um sítio aqui na região e tinha pedido remoção do trabalho umas três vezes, sem sucesso. 


Dessa vez saiu. E vim. Deu tudo certo. Consegui uma casa pra alugar e a remoção pra uma escola próxima. 


Os primeiros três meses foram só euforia. Longas caminhadas no entorno, muita coleta de frutas e legumes. Amigos vindo conhecer a casa e a vida nova. Muitos planos também.


Ver um desejo realizado traz muitas emoções. E as vivi intensamente durante algum tempo.

Curti a novidade da vida nova, o silêncio, a quietude da vila onde moro, da casa, dos arredores. 


As idas a Caxias passaram a ser um “evento”.  


Como é bom viver uma nova experiência! E sentir que se fez a escolha certa. 


Então veio o inverno, que chegou muito mais cedo este ano… e o frio, muito frio! E logo depois o COVID. 


O frio congelou não apenas minha casa, meu corpo, mas meu interior. Minha alegria foi se dissipando e comecei a sentir, profundamente, o vazio, e muitas emoções as quais eu sempre quis evitar.


Sem tantas distrações e sem muitas pessoas ao redor, naturalmente a mente se volta para si mesma.


E eu comecei a me enxergar. 


A cada dia me deparo com aquilo que Pema Chödrön chama de “os lugares que nos assustam”. Os lugares que me assustam não estão fora de mim, não são físicos, nem tampouco envolvem as pessoas.  


Começo a perceber que sozinha não posso culpar ninguém; não posso responsabilizar ninguém pelo mau-humor, pela minha tristeza, pela minha irritação ou raiva. Também não posso culpar o frio. O frio que sinto no corpo reflete o frio que sinto dentro: o frio da falta de acolhimento, aconchego, intimidade, amor, afeto. 


E não é porque não tenha pessoas que gostem de mim e que me dêem carinho. É algo mais profundo, muito mais profundo. 


Parece que estou aqui porque decidi não fugir mais, não fugir desses “lugares”, dessas emoções que tanto temi.  


Pema Chödrön diz que permanecer nesses “lugares” e com estas emoções dolorosas é o que pode nos fazer “dar o salto” e nos abrir. É nesses “lugares desconfortáveis” que começo acessar, aos poucos, em doses homeopáticas, o meu calor interno, a bondade e o amor dentro de mim.


E a bondade e o amor se manifestam de formas muito diferentes. É preciso ter “olhos” para ver essas sutilezas.


Nos dias monótonos, em que nada de novo acontece, tenho tentando enxergá-las e valorizá-las na diferença de tons das cores e da luz no por do sol, na laranja que caiu da árvore, na intensidade do fogo que muda com a lenha mais seca ou mais úmida, nas sementes brotando no experimento dos meus alunos, na leitura de cada nova palavra deles, nos dias mais quentes, no lençol térmico e no calor ao entrar na cama, numa visita que chega à casa, numa mensagem carinhosa, nos maravilhosos ensinamentos que tenho recebido de tantos mestres.


O amor não é nada convencional. Por isso precisamos do “salto” para acessá-lo.


Quando fazemos planos ou engendramos sonhos em busca daquilo que chamamos de felicidade, realmente não sabemos o que vai acontecer. Mas mesmo não sabendo, vale a pena experimentar. 


Como diz uma amiga querida, se não temos novas experiências, como faremos as mudanças que queremos na direção da felicidade?  


Estar aqui tem sido uma benção. Não porque tudo é “as mil maravilhas”, mas porque me sinto crescendo e experimentando o amor e a bondade. Como as sementes que brotaram na minha horta ou como aquelas que plantei com meus alunos, eu estou me modificando, pouco a pouco.  


Crescer, amadurecer e ser feliz leva tempo. E é preciso nos dar esse tempo. 


Estar aqui é me dar esse tempo, dar todo o tempo que preciso para cuidar de mim, pra me acolher, pra me acarinhar, pra me dar o calor que apenas eu posso dar. 


Obs.: “Os lugares que nos assustam” é também título do livro de Pema Chödrön, publicado pela editora Sextante. 


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

NA CONTRAMÃO DO MUNDO

 Me sinto na contramão do mundo, lutando para dar passos quando há uma multidão que vem na minha direção e que me impede de andar. Todo início de ano, me vejo querendo trabalhar mais para ganhar mais. Ao mesmo tempo, quando o trabalho chega e começa a correria, percebo que não é isso que quero realmente. Não sou preguiçosa e muito menos avessa ao trabalho. Adoro estudar, adoro dar aulas, adoro pensar no que vou levar para meus alunos, gosto de ler o que eles escrevem. Mas quando tenho muito trabalho, não consigo fazer o que gosto de fazer, pelo prazer de fazer, e o trabalho, muitas vezes, se transforma em sofrimento.

Já tentei me exigir menos, fazer menos e não me cobrar tanto, mas só isso não alivia o peso que carrego. Meu ritmo é singular, gosto de sentar e me entregar ao que estou fazendo, gosto de curtir as leituras, de imaginar minha sala de aula. Quando estou pressionada pelo tempo e pelo volume de tarefas, me sinto oprimida e todo meu esforço se torna em vão. Muitas vezes, me vejo indo para as aulas com a expressão dura, cansada, me espremendo para dar um sorriso. Como posso educar assim? Como posso ser exemplo se estou correndo para dar conta de tarefas? Não gosto que meus alunos me vejam assim, como um ser humano atormentado e confuso.

           Alguém pode dizer: a vida é assim, todos precisamos de dinheiro. Mas não me convenço. Quero tempo!!! Quero tempo pra acordar devagar de manhã, fazer minha meditação e olhar pra minha mente. Quero tempo pra pensar naquilo que é essencial na minha vida, pra conversar com as pessoas ao meu redor, pra cuidá-las, pra dar-lhes atenção. Quero tempo pra cuidar, eu mesma, da minha casa, das roupas, da comida que como.

           Quando olho ao meu redor, vejo pessoas assoberbadas de trabalho, contando os minutos no relógio. Pais que trabalham para dar mais presentes aos filhos e que, contraditoriamente, não têm tempo para dar-lhes atenção e carinho. Professores ansiosos por darem conta do conhecimento disponível e por produzir novos conhecimentos quando, muitas vezes, sabem que correm atrás de algo que lhes vai sempre escapar.

A busca desenfreada por atualização permanente virou uma obsessão e, ao mesmo tempo, uma prisão para muitas pessoas. Dentro de muitas instituições, o ser humano vale não pelo que é, mas pelo que conhece, por aquilo que lê, pelo volume de publicações que acumulou ou pelo número de títulos acadêmicos.  Para outras pessoas, a felicidade e o sucesso dependem daquilo que têm, do quanto conseguiram acumular ao longo de suas vidas.

        Às vezes, mesmo querendo lutar para fazer um caminho diferente, sou capturada por esses desejos e valores. Nesses momentos, me sinto como se me perdesse de mim mesma e não me reconhecesse mais. Um outro eu se instala e começa a atuar no meu corpo e na minha mente à revelia de mim.

Muitas vezes, poderia me sentir feliz com aquilo que tenho, mas quando vejo, por exemplo, que minha colega de trabalho tem o carro do ano e o meu é um modelo 2000 e não tenho perspectiva de trocá-lo, sinto vontade de trabalhar mais para ter um carro melhor. Minha felicidade, então, passa a ser buscada a partir de parâmetros que não são os meus de verdade. Quando olho para o carro da minha colega, esqueço de olhar pra dentro de mim, para o que realmente tem valor na minha vida. No fundo, todos estamos sofrendo por acreditarmos, mesmo que momentaneamente, que a felicidade pode estar em coisas como um carro ou um título acadêmico.

A realidade depende de nossa percepção. A realidade não é dada, mas é construída. A realidade não é algo objetivo, que independe de nós. Então, por que criamos muitas vezes uma realidade tão aprisionante para nós mesmos? Qual é o sentido desse movimento incessante em busca de coisas tão provisórias? Para onde estamos indo? Aonde queremos chegar?

        É possível viver e ser feliz sem correr para ganhar tanto dinheiro? Sim, é possível. É possível viver sem almejar ter uma casa própria ou um carro novo. É possível ser feliz sem ter tanto, sem ter tantas roupas, tantos sapatos, tantos celulares e computadores. É possível compartilhar a vida com os outros, dar e receber, e ser feliz.

A riqueza e a felicidade parecem estar onde estão a generosidade e a simplicidade. Quando unimos nossas pequenas quantidades, há sempre abundância. A riqueza não é, nem pode ser, propriedade privada. A riqueza está disponível para todos, se nos abrimos para dar e receber. A realidade pode ser e será diferente se conseguirmos olhar para os outros e para o mundo com um olhar mais sensível, mais aberto, um olhar que possa ver a beleza e a riqueza no simples viver e conviver. 

Texto escrito em abril de 2007. 

P.S: Hoje, 04/02/22, relendo este texto, escrito há 15 anos, e tendo mudado consideravelmente minha vida na direção em que eu almejava anos atrás, percebo que a mudança se constrói com o tempo e a persistência de cada passo que damos ao longo da jornada. Mais que tudo, quero reafirmar que “sempre é possível mudar”. 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

OLHAI PARA OS LÍRIOS DO CAMPO…

Dia desses fui convidada, ou melhor, me convidei para um café da manhã com três monges budistas na casa de uma amiga que está seguindo o caminho de Buda. 

Os monges são da tradição Theravada e vieram de Minas Gerais até Caxias do Sul/RS, onde resido, para daqui iniciar uma longa jornada, caminhando e parando para meditar nas florestas, como o Buda fez há dois mil e quinhentos anos atrás. Eles não carregavam quase nada, a não ser uma sacola com alguns pertences e uma tigela de mendicante. Na sua tradição, eles comem apenas aquilo que lhes é oferecido, no período da manhã. Após ao meio-dia não comem mais. 


Eles vestiam roupas como as que Buda vestia, uma túnica e um manto, e calçavam chinelos de dedo. Nada mais. 


Estar com esses praticantes por um breve período de tempo e contemplá-los chegando na casa, deixando suas coisas no chão, fazendo suas preces e tomando seu café da manhã sem falar foi o suficiente para me trazer muita inspiração. 


Na minha vida, tenho aspirado por viver uma vida simples, com cada vez menos pertences, menos coisas, menos complexidade. 


Iniciei minha trajetória profissional como professora do Ensino Fundamental, mas logo depois passei em um concurso para a carreira de professor universitário. Com o passar dos anos, fui percebendo que a docência universitária demandava tempo e esforço que não me permitiam muito mais do que trabalhar. Eu ansiava por tempo, por tempo livre e por diminuir a complexidade da minha mente e da minha vida. 


Depois de quase 20 anos no ensino universitário, consegui deixar, me desapegar do mesmo. Abandonei a carreira pública federal, com dedicação exclusiva e, depois, um emprego numa universidade comunitária para trabalhar no ensino fundamental. Passei em um concurso para a rede municipal de ensino de Caxias do Sul e até hoje exerço a função de professora dos anos iniciais. O trabalho mudou consideravelmente e o tempo livre aumentou. 


Nesses anos todos, venho tentando liberar espaço na minha casa, me desapegando de livros, roupas, objetos e muitos outros pertences. Também venho diminuindo as atividades externas, como cursos, atividades sociais, etc. para equilibrar minha vida e ter tempo para aquilo que é essencial. 


Neste ano de 2022, estou prestes a fazer uma nova mudança e a dar um novo passo em busca da simplicidade. Vou mudar para o interior, um distrito de Caxias, que tem apenas três ruas. Estou no processo de olhar para tudo o que tenho e ter que decidir o que vou levar e o que vou deixar para trás. 


Este processo não envolve apenas selecionar objetos, mas selecionar valores, selecionar o que verdadeiramente importa na minha vida. Estou deixando roupas requintadas, vestidos, sapatos e algumas poucas joias que não tem mais a ver comigo. Estou deixando obras de arte, quadros pintados à óleo pela minha mãe e outro que trouxe do Nepal, que são lindos, que embelezaram durante muito tempo a minha casa, mas que agora pesam demais na minha bagagem. Estou deixando livros preciosos, que já foram muito importantes pra mim, mas que preciso guardá-los não mais na estante, apenas na minha mente, porque já os contemplei o suficiente. 


Como os monges que conheci em um dia de passagem, eu quero caminhar na vida com apenas aquilo que posso carregar. Sei que ainda tenho muito a me desapegar, mas sei também que já deixei toneladas para trás. 


Hoje, na caminhada diária que venho fazendo como prática de contemplação e meditação, descobri que a beleza e a riqueza da vida estão presentes a cada passo. Tendo passado em frente ao edifício de uma amiga, resolvi apertar o interfone e apenas dar um alô e desejar um bom dia. Para minha surpresa, fui convidada para um café, que não havia tomado ainda. Fiquei emocionada com a sintonia entre nós, porque naquele momento ela também estava pensando em mim. 


Depois de ficarmos mais de uma hora conversando sobre nossas vidas e sobre o rumo que queremos dar a elas, ao voltar para casa me deparei com um saquinho pendurado na lixeira amarela, de lixo seletivo, perto do meu prédio. Fiquei curiosa e, ao olhar, constatei que eram biscoitos, embalados como oferenda para quem tivesse passando, com fome. 


Na hora, o que veio à mente, foi a passagem da Bíblia que li num livro recentemente e que deixo como reflexão, para mim mesma e para os leitores: 


«Ninguém pode servir a dois senhores; pois ou há de aborrecer a um e amar ao outro, ou há de unir-se a um e desprezar ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas. Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos da vossa vida pelo que haveis de comer ou beber, nem do vosso corpo pelo que haveis de vestir; não é a vida mais que o alimento, e o corpo mais que o vestido? Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros, e vosso Pai celestial as alimenta; não valeis vós muito mais do que elas? Qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode acrescentar um cúbito à sua estatura? Por que andais ansiosos pelo que haveis de vestir? Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam, contudo vos digo que nem Salomão em toda a sua glória se vestiu como um deles. Se Deus, pois, assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé? Assim não andeis ansiosos, dizendo: Que havemos de comer? ou: Que havemos de beber? ou: Com que nos havemos de vestir? (Pois os gentios é que procuram todas estas coisas); porque vosso Pai celestial sabe que precisais de todas elas. Mas buscai primeiramente o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.» (Mateus 6:24-33)


É PERMITIDO ENVELHECER

Hoje é o primeiro dia da licença de três meses que antecede a minha aposentadoria. É muito bom poder realizar a minha rotina antiga - medita...